Rubinae Maia
The Entity of Water
(Original Portuguese text)
This text is one of various commissioned responses to SALVAGE Festival; a day of performance art on and around the coastline of Folkstone during the summer of 2019.
︎︎︎ about SALVAGE
Kajoli Ilojak, SALVAGE, 2019. Photo credit pending.
Hoje provavelmente é o último dia quente do ano. Sol intenso numa semana de outono, e consequentemente ruas, parques e praias com muitas pessoas. Um presente inesperado. Todos falam mais alto, e há uma vibração de entusiamo ocupando os espaços da cidade. Após o almoço, eu coloco o meu filho na cama, e ele adormece com um pouco de resistência. Então, saio de casa às pressas com receio do meu atraso. Com um filho pequeno, o tempo escapa para além da minha constante tentativa de controle. Eu aceito. Mas admito, por vezes a vida doméstica me consome. Eu caminho rápido, encontro alguns amigos, mas sigo a direção indicada no programa. De frente para uma praia completamente lotada está Kajoli, observando atenta o tumulto de crianças e famílias. Ela, bem maquiada, usando um traje deslumbrante. Um vestido tradicional de casamento de Bangladesh nas cores vermelho e dourado. Tudo ao seu redor é tão destoante, que é impossível não notá-la. Me aproximo, e falo qualquer coisa. Ela me diz que é a primeira vez que vê aquela praia tão cheia. Parece ligeiramente confusa e surpresa, pois já não sabe se o lugar designado para a sua performance pode acolher sua ação. Eu sinto que ela não se dá conta de que a performance já começou.
Quando eu conheci Kajoli em 2016, ela possuía cabelos muito longos. Cada um de seus fios continham inúmeras histórias. Histórias que ela revelava aos poucos a cada encontro. No ano passado, ela renunciou ao cabelo durante uma performance. Com isso, as memórias acumuladas naqueles longos fios, décadas após décadas, foram arremessadas para longe. Seguramente, Kajoli é uma pessoa que gosta de contar histórias, apesar de ter aprendido a manter silêncio. De fato, ela conhece bem a dor do peso e da renúncia. Eu posso imaginar que o cabelo de Kajoli devia ser insuportavelmente pesado. Tão pesado quanto as narrativas patriarcais que insistem em derrubá-la no chão. Talvez a necessidade de manter a cabeça erguida, tenha lhe trazido a decisão do corte. Os seus cabelos continuam crescendo, mas até hoje ela permanece cortando. Eventualmente, brinca de usar perucas e adornos. Parece se divertir com a possibilidade de ter vários rostos. Agora, eu consigo ver melhor a beleza de seus olhos.
Cuidadosamente, Kajoli caminha sobre as pedras e escolhe ficar perto do mar. Ela, o vestido e a âncora. De costas para o horizonte, ela nos observa. Não sorri. O vento insiste em desarranjá-la, mas calmamente ela se alinha com aquele lugar até que um campo de força surge ao seu redor. De pé, ela segura uma âncora de ferro enferrujada por anos de uso. Há tensão, o objeto certamente pesa mais de dez quilos. O peso, novamente o peso. Dessa vez sobre os seus braços. Kajoli não é uma mulher grande ou corpulenta, mas do alto dos seus 1.52 metro, ela segura a âncora com confiança e firmeza. Seu corpo permanece imóvel. Sim, ela está nos contando um fragmento da sua história: mulher, nascida em Bangladesh, um país asiático entrecortado por rios e mar. Decerto, faz total sentido a sua predileção por estar perto da água. Kajoli nasceu numa comunidade extremamente conservadora, onde o poder de escolha e decisão é majoritariamente
masculino. Mulheres obedecem. E se não, sofrem retaliações com todos os tipos de abuso e violência, seja moral, psicológica, e até mesmo física. Dos ataques com ácido ao feminicídio. Por barreiras políticas, culturais e religiosas, pouco se discute sobre esse cenário desolador. Como muitas outras mulheres, Kajoli foi humilhada e sofreu violência doméstica, mas corajosamente não obedeceu a regra do silêncio. Neste momento, a âncora pesa sobre os seus braços, contudo ela resiste de pé. Quando precisa descansar, apenas a apoia sobre uma pedra, respira profundamente, para em seguida erguê-la novamente diante do peito. Seu fôlego exprime o fardo do acúmulo de todas as coisas que lhe foram impostas. Ou, daquilo que lhe foi rigorosamente negado: sua dignidade.
Dignidade. Integridade. Consciência de si mesmo. Brio. O valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço. Que não pode ser comprado ou substituído. Qualidade inerente aos seres humanos. Desse modo, totalmente inseparável da autonomia. A perda da dignidade é a perda do si mesmo. Do próprio brilho. Da liberdade. Então, pesa. É extremamente pesado. Uma carga. Uma bagagem. Um fardo. Possui volume. Ocupa todo o espaço. É como a gravidade que puxa para o chão. Representa solidez. Consistência. O que é maciço. Que exige tremendo esforço. Que constrange, envergonha. E exaure. É árduo. Difícil. Laborioso. Obriga a caminhar vagarosamente. Às vezes, paralisa. Outras vezes, mata. Provoca tensão, dor. Encarcera. É carregado. Cheio. Opressivo. Uma sobrecarga. Ofende. Magoa. Destrói qualquer vestígio de auto amor. É obsceno. Grosseiro. Indelicado. Violento. De extrema violência. Difícil de digerir. Provoca mal estar por ser indigesto. Venenoso. É denso, tão denso. E vasto. A perda da integridade acarreta emoções devastadas. Induz uma culpa que isola. Desfaz os sonhos. Amputa. Pesa, pesa demasiado. É um tipo de mutilação. O peso de todas as coisas que ancoram sem permitir navegar... Observando-a adornada com seu vestido de casamento e sem seus longos cabelos, eu sinto o peso das suas escolhas e da sua desobediência. A ruptura. Ela não se calou, a sua imagem é uma denúncia.
Eu me sento de frente para Kajoli. Algumas crianças se aproximam, algumas famílias interrompem o passeio para vê-la. Estamos todos aqui, ao seu redor. E todos nós a observamos. É um contexto tão curioso e estranho: ela quase estática em seu esplendor, e o caos inevitável de uma tarde de calor numa praia extremamente movimentada. Um contraste que acidentalmente, torna ainda mais visível o profundo simbolismo de sua ação solitária e contemplativa. Com o passar do tempo, é possível perceber o seu esforço em segurar a âncora. Ela se move, troca os braços de posição, apoia a peça no chão por alguns segundos. E a ergue. Para mim, que sou brasileira, é inevitável reconhecer na figura de Kajoli, uma espécie de entidade que me lembra os Orixás do Candomblé. Uma religião de Matriz Africana praticada no Brasil, desde os tempos da escravidão. Na época, nominado pelos colonizadores portugueses de ‘Batuque de Negros’, devido a censura imposta pela Igreja Católica. Uma religião das minorias, que atualmente continua sendo mal interpretada e perseguida por algumas igrejas Cristãs Evangélicas. A palavra Candomblé significa dança ou dança com atabaques, e os cultos são dirigidos a forças da natureza personificados na
forma de figuras ancestrais Africanas divinizadas, chamadas Orixás, que significa ‘luz que se revela'. Cada Orixá é um ponto de energia na natureza, possuindo um sistema simbólico particular com cores, roupas, objetos, comidas, músicas, dança, oferendas, espaços físicos e até horários. Existem inúmeros Orixás, mas no Brasil, duas das entidade mais populares são Iemanjá, a Senhora das Águas Salgadas, dos Mares e Oceanos e Oxum, a Senhora das Águas Doces, dos Rios, das Cachoeiras e Lagos. Ambas entidades femininas que incorporam a virtude das águas. Seu poder é puramente Matriarcal. É através de sua força que um barco navega em mar calmo ou atravessa uma tempestade. Uma cidade inteira se desfaz com uma Tsunami. É através da sua fúria que emergem as chuvas torrenciais, e consequentemente a subida dos rios e as inundações. Ou também, é através do seu equilíbrio, da sua generosidade que surge o copo d’água para saciar a sede quando a garganta está seca. Em nós, elas são as lágrimas, o suor, a saliva e a urina. Testemunhando Kajoli, eu vejo uma mistura dessas forças selvagens: Iemanjá e Oxum, juntas. Todas elas capazes de erguer a âncora do próprio destino em meio as situações mais turbulentas.
Kajoli, permanece nos observando por mais de uma hora. Eu me afasto, e vou embora antes do término de sua ação. Deste modo, para mim não existe um final. Eu prefiro fantasiar que a entidade Kajoli, continuará para sempre naquele mesmo lugar, de pé com a cabeça erguida, sustentando a sua âncora e resistindo a todas as intempéries.
Quando eu conheci Kajoli em 2016, ela possuía cabelos muito longos. Cada um de seus fios continham inúmeras histórias. Histórias que ela revelava aos poucos a cada encontro. No ano passado, ela renunciou ao cabelo durante uma performance. Com isso, as memórias acumuladas naqueles longos fios, décadas após décadas, foram arremessadas para longe. Seguramente, Kajoli é uma pessoa que gosta de contar histórias, apesar de ter aprendido a manter silêncio. De fato, ela conhece bem a dor do peso e da renúncia. Eu posso imaginar que o cabelo de Kajoli devia ser insuportavelmente pesado. Tão pesado quanto as narrativas patriarcais que insistem em derrubá-la no chão. Talvez a necessidade de manter a cabeça erguida, tenha lhe trazido a decisão do corte. Os seus cabelos continuam crescendo, mas até hoje ela permanece cortando. Eventualmente, brinca de usar perucas e adornos. Parece se divertir com a possibilidade de ter vários rostos. Agora, eu consigo ver melhor a beleza de seus olhos.
Cuidadosamente, Kajoli caminha sobre as pedras e escolhe ficar perto do mar. Ela, o vestido e a âncora. De costas para o horizonte, ela nos observa. Não sorri. O vento insiste em desarranjá-la, mas calmamente ela se alinha com aquele lugar até que um campo de força surge ao seu redor. De pé, ela segura uma âncora de ferro enferrujada por anos de uso. Há tensão, o objeto certamente pesa mais de dez quilos. O peso, novamente o peso. Dessa vez sobre os seus braços. Kajoli não é uma mulher grande ou corpulenta, mas do alto dos seus 1.52 metro, ela segura a âncora com confiança e firmeza. Seu corpo permanece imóvel. Sim, ela está nos contando um fragmento da sua história: mulher, nascida em Bangladesh, um país asiático entrecortado por rios e mar. Decerto, faz total sentido a sua predileção por estar perto da água. Kajoli nasceu numa comunidade extremamente conservadora, onde o poder de escolha e decisão é majoritariamente
masculino. Mulheres obedecem. E se não, sofrem retaliações com todos os tipos de abuso e violência, seja moral, psicológica, e até mesmo física. Dos ataques com ácido ao feminicídio. Por barreiras políticas, culturais e religiosas, pouco se discute sobre esse cenário desolador. Como muitas outras mulheres, Kajoli foi humilhada e sofreu violência doméstica, mas corajosamente não obedeceu a regra do silêncio. Neste momento, a âncora pesa sobre os seus braços, contudo ela resiste de pé. Quando precisa descansar, apenas a apoia sobre uma pedra, respira profundamente, para em seguida erguê-la novamente diante do peito. Seu fôlego exprime o fardo do acúmulo de todas as coisas que lhe foram impostas. Ou, daquilo que lhe foi rigorosamente negado: sua dignidade.
Dignidade. Integridade. Consciência de si mesmo. Brio. O valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço. Que não pode ser comprado ou substituído. Qualidade inerente aos seres humanos. Desse modo, totalmente inseparável da autonomia. A perda da dignidade é a perda do si mesmo. Do próprio brilho. Da liberdade. Então, pesa. É extremamente pesado. Uma carga. Uma bagagem. Um fardo. Possui volume. Ocupa todo o espaço. É como a gravidade que puxa para o chão. Representa solidez. Consistência. O que é maciço. Que exige tremendo esforço. Que constrange, envergonha. E exaure. É árduo. Difícil. Laborioso. Obriga a caminhar vagarosamente. Às vezes, paralisa. Outras vezes, mata. Provoca tensão, dor. Encarcera. É carregado. Cheio. Opressivo. Uma sobrecarga. Ofende. Magoa. Destrói qualquer vestígio de auto amor. É obsceno. Grosseiro. Indelicado. Violento. De extrema violência. Difícil de digerir. Provoca mal estar por ser indigesto. Venenoso. É denso, tão denso. E vasto. A perda da integridade acarreta emoções devastadas. Induz uma culpa que isola. Desfaz os sonhos. Amputa. Pesa, pesa demasiado. É um tipo de mutilação. O peso de todas as coisas que ancoram sem permitir navegar... Observando-a adornada com seu vestido de casamento e sem seus longos cabelos, eu sinto o peso das suas escolhas e da sua desobediência. A ruptura. Ela não se calou, a sua imagem é uma denúncia.
Eu me sento de frente para Kajoli. Algumas crianças se aproximam, algumas famílias interrompem o passeio para vê-la. Estamos todos aqui, ao seu redor. E todos nós a observamos. É um contexto tão curioso e estranho: ela quase estática em seu esplendor, e o caos inevitável de uma tarde de calor numa praia extremamente movimentada. Um contraste que acidentalmente, torna ainda mais visível o profundo simbolismo de sua ação solitária e contemplativa. Com o passar do tempo, é possível perceber o seu esforço em segurar a âncora. Ela se move, troca os braços de posição, apoia a peça no chão por alguns segundos. E a ergue. Para mim, que sou brasileira, é inevitável reconhecer na figura de Kajoli, uma espécie de entidade que me lembra os Orixás do Candomblé. Uma religião de Matriz Africana praticada no Brasil, desde os tempos da escravidão. Na época, nominado pelos colonizadores portugueses de ‘Batuque de Negros’, devido a censura imposta pela Igreja Católica. Uma religião das minorias, que atualmente continua sendo mal interpretada e perseguida por algumas igrejas Cristãs Evangélicas. A palavra Candomblé significa dança ou dança com atabaques, e os cultos são dirigidos a forças da natureza personificados na
forma de figuras ancestrais Africanas divinizadas, chamadas Orixás, que significa ‘luz que se revela'. Cada Orixá é um ponto de energia na natureza, possuindo um sistema simbólico particular com cores, roupas, objetos, comidas, músicas, dança, oferendas, espaços físicos e até horários. Existem inúmeros Orixás, mas no Brasil, duas das entidade mais populares são Iemanjá, a Senhora das Águas Salgadas, dos Mares e Oceanos e Oxum, a Senhora das Águas Doces, dos Rios, das Cachoeiras e Lagos. Ambas entidades femininas que incorporam a virtude das águas. Seu poder é puramente Matriarcal. É através de sua força que um barco navega em mar calmo ou atravessa uma tempestade. Uma cidade inteira se desfaz com uma Tsunami. É através da sua fúria que emergem as chuvas torrenciais, e consequentemente a subida dos rios e as inundações. Ou também, é através do seu equilíbrio, da sua generosidade que surge o copo d’água para saciar a sede quando a garganta está seca. Em nós, elas são as lágrimas, o suor, a saliva e a urina. Testemunhando Kajoli, eu vejo uma mistura dessas forças selvagens: Iemanjá e Oxum, juntas. Todas elas capazes de erguer a âncora do próprio destino em meio as situações mais turbulentas.
Kajoli, permanece nos observando por mais de uma hora. Eu me afasto, e vou embora antes do término de sua ação. Deste modo, para mim não existe um final. Eu prefiro fantasiar que a entidade Kajoli, continuará para sempre naquele mesmo lugar, de pé com a cabeça erguida, sustentando a sua âncora e resistindo a todas as intempéries.